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Teologia 

A razão não é que Deus tem que dizer as coisas mais de uma vez para que elas sejam verdadeiras ou autorizadoras. A razão, pelo contrário, é que se algo só for dito apenas uma vez, este se torna mais fácil de ser mal-entendido ou mal-aplicado. Quando algo é repetido em várias ocasiões em contextos ligeiramente diferentes, os leitores desfrutarão de um domínio melhor do que se quer dizer e do que está em jogo.
É por isto que a famosa passagem do “batismo pelos mortos” (1 Co 15:29) não é desenvolvida extensivamente e não causou um impacto enorme, digamos, na Confissão de Heidelberg ou na Confissão de Westminster. Mais de quarenta interpretações da passagem já foram oferecidas na história da igreja. Os mórmons estão bem certos o que a passagem significa, claro, mas a razão por que eles têm tanta certeza é porque eles as lêem dentro do contexto de outros livros que eles alegam que sejam inspirados e autoritários.
Este princípio também salienta uma das razoes porque a maioria dos cristãos não vêm a ordem de Cristo para lavar os pés uns dos outros como um terceiro sacramento ou ordenança. O batismo e a ceia do Senhor são certamente discutidos em mais de uma única vez, e há ampla evidência de que a igreja primitiva observou ambas as práticas, mas não se pode dizer as mesmas coisas sobre o lava-pé. Mas há mais para se falar.

Seja Cuidadoso Ao Ser Absoluto Naquilo Que Foi Dito Ou Ordenado Apenas Uma Vez

A Necessidade de Interpretação

Com certa freqüência encontramos com alguém que diz com muito fervor: "Você não precisa interpretar a Bíblia; leia-a, apenas, e faça o que ela diz." Usualmente, semelhante observação reflete o protesto contra o "profissional", o estudioso, o pastor, o catedrático ou o professor da Escola Dominical que, por meio de "interpretar," parece estar tirando a Bíblia do homem ou da mulher comum. É sua maneira de dizer que a Bíblia não é um livro obscuro. "Afinal das contas," argumenta-se, "qualquer pessoa com metade de um cérebro pode lê-la e entendê-la. O problema com um número demasiado de pregadores e professores é que cavam tanto que tendem a enlamear as águas. O que era claro para nós quando a lemos já não é mais tão claro."

Há muito de verdade em tal protesto. Concordamos que os cristãos devam aprender a ler a Bíblia, crer nela, e obedecê-la. E concordamos especialmente que a Bíblia não precisa ser um livro obscuro, se for corretamente estudada e lida. Na realidade, estamos convictos que o problema individual mais sério que as pessoas têm com a Bíblia não é uma falta de entendimento, mas, sim o fato de que entendem bem demais a maior parte das coisas! O problema de um texto tal como: "Fazei tudo sem murmurações nem contendas" (Fp 2.14), por exemplo, não é compreendê-lo, mas, sim, obedecê-lo — colocá-lo em prática.

Concordamos, também, que o pregador ou o professor estão por demais inclinados a escavar primeiro, e a olhar depois, e assim encobrir o significado claro do texto, que freqüentemente está na superfície. Seja dito logo de início — e repetido a cada passo, que o alvo da boa interpretação não é a originalidade, não se procura descobrir aquilo que ninguém jamais viu.

A interpretação que visa a originalidade, ou que prospera com ela, usualmente pode ser atribuída ao orgulho (uma tentativa de "ser mais sábio" do que o resto do mundo), ao falso entendimento da espiritualidade (segundo o qual a Bíblia está repleta de verdades profundas que estão esperando para serem escavadas pela pessoa espiritualmente sensível, com um discernimento especial), ou a interesses escusos (a necessidade de apoiar um preconceito teológico, especialmente ao tratar de textos que, segundo parece, vão contra aquele preconceito). As interpretações sem igual usualmente são erradas. Não se quer dizer com isto que o entendimento de um texto não possa freqüentemente parecer sem igual para alguém que o ouve pela primeira vez. O que queremos dizer mesmo é que a originalidade não é o alvo da nossa tarefa.

O alvo da boa interpretação é simples: chegar ao "sentido claro do texto." E o ingrediente mais importante que a pessoa traz a essa tarefa é o bom-senso aguçado. O teste de uma boa interpretação é se expõe o sentido do texto. A interpretação correta, portanto, traz alívio à mente bem como uma aguilhoada ou cutucada no coração.

Mas, se o significado claro é aquilo sobre o que a interpretação diz respeito, então para que interpretar? Por que não ler, simplesmente? O significado simples não vem pela mera leitura? Em certo sentido, sim. Mas num sentido mais verídico, semelhante argumento é tanto ingênuo quanto irrealista por causa de dois fatores: a natureza do leitor e a natureza da Escritura.

Considere o pano-de-fundo histórico e cultural da Bíblia.

A Bíblia foi escrita em um tempo e numa cultura muito diferente da nossa. Isto posto, para descobrir o significado do autor, temos que aprender a ler como se fôssemos um dos seus contemporâneos.

Como fazer isto? A maioria de nós recorre a comentários e outras ferramentas de ajuda. Esses livros podem nos proporcionar uma visão do pano de fundo cultural e histórico dos escritos bíblicos. Por exemplo, a Bíblia, com freqüência, descreve o Senhor cavalgando nas nuvens (Sl 18.7-15; 104.3; Na 1.3). Um comentário nos diz que os vizinhos de Israel freqüentemente pintavam seu deus, Baal, cavalgando numa carruagem para a batalha. Se analisarmos a imagem bíblica à luz do antigo Oriente Próximo, perceberemos que a nuvem de Deus é uma carruagem da qual ele se utiliza para a guerra. No Novo Testamento, vemos que Jesus também se utiliza da imagem de um cavaleiro nas nuvens (Mt 24.30; Ap 1.7), e entendemos que não se trata de uma nuvem branca e fofinha, mas sim de uma nuvem de tempestade que ele dirige num julgamento. Agora, sim, podemos perceber que a imagem do Antigo Testamento chamava os israelitas adoradores de Baal ao arrependimento e à adoração do verdadeiro cavaleiro das nuvens, Yahweh (o nome próprio de Deus no Antigo Testamento, traduzido por SENHOR).

E a passagem do Salmo 23.1? Conseguimos entender a figura de um pastor sem recorrer ao mundo antigo? Sabemos o que faz um pastor: ele protege, guia, toma conta das suas ovelhas.

A resposta é sim — e não. Nos tempos bíblicos, os pastores agiam como os pastores dos tempos modernos de todas essas maneiras. Porém, se não estivermos cônscios do uso da figura do pastor no antigo Oriente, perderemos um aspecto importante do Salmo. Os reis do Oriente sempre se referiam a si mesmos como "pastores" do seu povo. Quando lemos o Salmo 23 à luz do seu pano-de-fundo histórico, descobrimos um ensino importante: O Senhor é o pastor real.

Atente à gramática e à estrutura da passagem.

Devemos ler uma passagem com muita atenção, dando um tratamento especial aos detalhes gramaticais. Temos de levar em consideração como o pensamento do autor progride. Temos de segur a sua argumentação, entrar no mundo da sua história, absorver sua poesia. Para isso, temos de considerar coisas como os conectivos (mas, portanto), tempos verbais, e modificadores dos substantivos, para nos ajudar a descobrir as conexões lógicas entre as idéias.

Observemos as conjunções, os tempos verbais, adjetivos e outros indicadores de relacionamento em algumas poucas sentenças do Salmo 131. Exemplificaremos um poema que tem um estilo caracteristicamente especial de estrutura — o paralelismo — no qual as frases repercutem umas nas outras. A primeira cláusula faz uma afirmação, que é expandida nas cláusulas seguintes. Quando ler um poema bíblico, reflita como o paralelismo contribui para o seu significado. Aqui, a estrutura do paralelismo (tanto na gramática como no significado) une as três primeiras cláusulas do verso 1:

SENHOR, não é soberbo o meu coração,
nem altivo o meu olhar;
não ando à procura de grandes coisas,
nem de coisas maravilhosas demais para mim.

Atente para a relação estrutural existente entre as três cláusulas, que evidencia o quanto Davi se distanciou do orgulho nestas três áreas distintas: o âmago da sua personalidade (coração), o seu comportamento exterior (olhos), e suas ações.

Porém a conjunção pelo contrário, que inicia o próximo verso, constrói um forte contraste entre o orgulho descrito no primeiro verso e a atitude expressa no segundo:

Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma;
como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe,
como essa criança é a minha alma para comigo.

A tradução dos verbos no hebraico (calar e sossegar) indica que a fé de Davi teve origem no passado e continuava no presente. Ele, então, ilustrou sua disposição presente usando a palavra como. Perceba que Davi não usou um termo genérico para criança; ao invés disso, usou o adjetivo desmamada. Se refletirmos sobre o adjetivo escolhido, concluiremos que uma criança desmamada não precisa do leite materno e descansa calmamente no colo da mãe. A criança não está buscando a fonte de seu sustento, entretanto, repousa calmamente nos braços maternos.

O verso final do Salmo utiliza-se do imperativo para nos levar às verdades básicas apresentadas nos dois primeiros versos:

Espera, ó Israel, no SENHOR,
desde agora e para sempre.

Um estudo sério da gramática e sintaxe (estrutura) devem ser baseados na língua original em que o texto foi escrito. A maioria dos leitores da Bíblia não sabe hebraico, língua em que o Antigo Testamento foi escrito e nem o Grego do Novo Testamento. Por essa razão, ter uma cópia literal de uma tradução é muito útil para que possamos fazer um estudo sério da Bíblia. Novamente, repito que para se ter uma melhor compreensão do texto original devemos usar o método da comparação de um grande número de traduções. Um bom comentário baseado no hebraico ou grego tem um valor inestimável para fazer uma análise relacional entre a gramática e estrutura.

Davi Marcos

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